terça-feira, 7 de outubro de 2008

Tratando Neuroses

TRATANDO DE NEUROSES INSTALADAS EM NOME DE DEUS (Ferramentas Bíblicas para Terapia de Cristãos) Karl Kepler, seminário no Congresso de BH A proposta deste estudo é auxiliar o terapeuta cristão a fazer uso da Bíblia para a compreensão e auxílio do processo terapêutico de cristãos. Somos fruto da mesma “grande igreja” que nossos pacientes, uma igreja onde o verdadeiro evangelho disputa espaço com muitos outros ensinos parecidos (algo como joio e trigo quando verdes). É minha convicção que, da mesma forma como a convivência e a pregação evangélica pode por vezes ter formado uma neurose em nossos pacientes, o verdadeiro evangelho, tal qual retratado na Bíblia, pode vir a ser extremamente curativo. O Problema Básico A vida com Deus para nossos pacientes muitas vezes é parecida com uma cabine elétrica de alta tensão: algo muito importante e necessário, mas muito perigoso. Eles mostram medo de errar nas decisões, medo de pecar, e esse medo traz pressuposto um medo ainda mais básico: o medo do próprio Deus. Esse “Deus que mete medo” tem muito respaldo bíblico, e por isso até hoje continua a ser muito adorado, ensinado e temido na grande maioria de nossas igrejas. É efetivamente essa a forma pela qual Deus mais se dá a conhecer ao povo de Israel no Êxodo, na formação daquela nação, através da Lei de Moisés. É enfatizado o “lado Juiz” de Deus que, embora coexista com outras faces mais misericordiosas dEle, impõe-se de forma dramática ao povo desde as pragas no Egito, passando por sua primeira manifestação no Monte Sinai (Dt 5.23, onde o povo ficou apavorado perante o fogo, a fumaça e a voz), seguido pelos castigos ao longo da peregrinação, até o estabelecimento do sucesso ou fracasso na vida futura da nação, de acordo com a obediência que traz a bênção ou a desobediência que traz maldição (Dt 28). Esse “Deus do temor” se manifesta grandiosamente nas guerras (contra os inimigos de Israel) e no posterior exílio – contra seu próprio povo – trazendo o castigo que Ele dissera que iria trazer. O fato é que essa imagem de Deus é parcialmente verdadeira e bíblica. É com esse aspecto de Deus que muitos dos nossos pacientes sofrem, em diversos graus. Para os que são atacados de pânico, imagino que a sensação seja a de estar sendo perseguido por esse deus-juízo, onisciente, onipotente e onipresente. Para os que morrem de medo de tomar alguma decisão errada, o sentimento deve ser mais ou menos como o de um escravo que teme pela própria vida quando desagrada ao seu senhor, ou que teme pelo mau humor de seu senhor, sem saber o que foi que o provocou. E é esse “Senhor” que nós pastores pregamos quando advertimos os crentes a sempre primeiro descobrirem “qual é a vontade de Deus”. É por causa desse “Deus que mete medo” que muitos irmãos e irmãs se apavoram, por exemplo, com a idéia de Jesus voltar e apanhá-los desprevenidos ou com algum pecado inconfesso – e como castigo não levá-los junto no arrebatamento, deixando-os aqui para vivenciar os horrores dos tempos do fim. É com esse Deus que os crentes precisam se acertar quando sentem que pecaram; é esse Deus que, desde nossa infância, “tudo escuta e tudo vê”, sabendo tudo o que pensamos e fazemos. O Evangelho A solução para o problema básico é a essência do evangelho, que por ser tão não-humana, é difícil para nossa alma acreditar. A boa notícia do evangelho é que, por causa da vinda de Jesus Cristo, finalmente nós podemos ser aceitos por Deus, nos reconciliar com Ele, de graça. A boa notícia é que Deus não está mais irado conosco: a ira já foi satisfeita nAquele que morreu em nosso lugar, e por isso Ele nos salvou, por meio da fé, sem qualquer pré-condição, simplesmente porque Ele é bom. Alegre-se, Deus não está mais descontente com você! Essa é a “maravilhosa graça”, maior que o meu pecar, que alivia a minha alma. A sua dívida já foi paga. Custou caro, mas foi paga, inteiramente. A Bíblia nos garante que “havendo Deus falado aos pais de muitas maneiras, agora nestes nossos dias Ele nos fala através do Filho” (Hb. 1). Falta Jesus àquela descrição do Deus que mete medo; aquela descrição é parcialmente verdadeira, porém bastante incompleta, e tornada velha desde que Deus em Jesus disse: “esse é o sangue da nova aliança que faço com vocês”. Jesus faz toda a diferença. Por causa dele Paulo pôde dizer que somos justificados pela fé, e por isso “temos paz com Deus”(Rm 5.1); que “antes éramos inimigos de Deus, mas agora em Cristo fomos reconciliados com Ele” (Rm 5.10) e que Deus prova o seu amor para conosco pelo fato de Jesus ter morrido por nós sendo nós ainda pecadores(Rm 5.8). Ele só quer que acreditemos nisso que ele fez por nós. Em suma, a boa nova é que, por causa da vinda e da morte de Jesus, pecadores são aceitos por Deus; que, por causa do sacrifício de Jesus, nós passamos a fazer parte da família de Deus, adotados como filhos. Não somos mais escravos que precisam viver com medo de desagradar ao seu Senhor: somos filhos amados, que têm toda a certeza do seu amor, independentemente do que fazemos ou deixamos de fazer (Rm 8.15-17). Nas palavras de João, conhecemos o Deus que nos ama primeiro (I Jo 4.19), o mesmo “Deus que ama pecadores” de Paulo. Essa nova aliança não é mais do tipo: “se você obedecer, mandarei as bênçãos, se desobedecer, mandarei as maldições”. A nova aliança é o cumprimento da vontade de Deus, da salvação pela fé, expressa já em várias profecias do Velho Testamento, do tipo: “um dia eu tirarei os vossos pecados” (Jr 33) e “escreverei as minhas leis nos seus corações” (Jr 31.31). O terrível problema dos nossos pecados e da morte que eles trazem foi resolvido pelo amor de Deus: “Ele carregou sobre si as nossas enfermidades; pelas suas pisaduras fomos sarados; o castigo que nos traz a paz estava sobre ele” (Is 53). Essa é a boa notícia, o evangelho. A Vida na Corda Bamba Por incrível que pareça, essa maravilhosa salvação trazida pelo Messias Jesus Cristo não está sendo pregada aos crentes. Normalmente ela é pregada corretamente aos incrédulos (nos sermões ditos “evangelísticos”), mas não aos crentes. Nossa mensagem na Igreja tem sido mais ou menos assim: “venha a Cristo, Ele te aceita assim como você é;” e depois que o indivíduo atende o apelo, passamos a pregar sobre como o seguidor de Cristo deve viver, falar, se vestir, se comportar, e sobre o que falta em você “para Deus abençoá-lo”. Como resultado, muita gente nova vem às igrejas, mas poucos persistem, e menos ainda aumentam seu conhecimento de Deus, amadurecendo na fé. E os que permanecem correm sério risco de se neurotizar por causa dessa “dupla personalidade de Deus”: bom e amoroso para os incrédulos, mas severo, cheio de deveres e amedrontador para os que já crêem. A vida cristã mais parece a de um equilibrista na corda bamba, onde um escorregão pode ser fatal. Dizemos que “Deus perdoou todo o seu passado; mas daqui para a frente, cuidado para não pecar, para não tomar decisões fora da vontade de Deus, etc…” Conforme o diagnóstico de Paulo, parece que estamos começando pela graça e querendo acabar pela Lei (Gál. 3) Compare isso com o que diz Jesus: “Vinde a mim, todos vós que estais cansados e sobrecarregados… e achareis descanso para vossas almas”. (Mt 11.28). O tom é bem diferente: é uma oferta, e não uma cobrança. Tente ver nos seus pacientes (e em você também): qual a imagem interna de Deus que eles têm? A de alguém que dá descanso, ou a de alguém que vive cobrando esforço? Temas Específicos Uma dificuldade adicional é que a irracionalidade daquele medo de Deus não costuma ceder facilmente. A Lilo (missionária da Casa da Esperança, Mondaí - SC) já me disse que essa mudança, para passar do medo de Deus para o amor a Deus é algo tão profundo que só o Espírito Santo pode efetuar. Se essa é a situação do seu paciente, você pode estar tendo o auxílio de um ótimo Assistente no processo terapêutico! Por causa desse enorme medo envolvido é possível que a mudança só possa acontecer em pequenas etapas, uma questãozinha por vez. Compartilho aqui algumas “ferramentas bíblicas” que me foram particularmente valiosas nesse mesmo processo de transformação, depois que, aos 17 anos de idade eu mesmo quase enlouqueci com uma “obsessão por não pecar”; são ensinos que fui aprendendo no seminário, na Bíblia e no convívio com cristãos de carne e osso – e alguns não-cristãos também – que foram instrumentos da graça de Deus: 1. Bíblia x tradição. Um primeiro recurso, que vai ser aceito até pelos obsessivos mais preocupados, é diferenciar “palavra de homens” de “palavra de Deus”, e num segundo estágio – para os irmãos neo-pentecostais – diferenciar “profecia trazida por meio de homens, servos de Deus” da “palavra inspirada pelo Espírito Santo, o texto bíblico, as Escrituras Sagradas” que, cfe. os últimos versículos de Apocalipse, não devem mais sofrer acréscimo, nem subtração. Todo pastor razoável admitirá que é um ser humano falível; se você perguntar amigavelmente, os pastores concordarão que seus sermões não são “Escritura Sagrada”, mas sim uma tentativa sincera e piedosa de explicar mensagens baseadas na Bíblia (portanto sujeita a erros, tanto quanto esta palestra). Já com os irmãos profetas pode ser um pouco mais difícil; infelizmente questionamentos não costumam ser bem vindos, e parte-se para um “tudo ou nada”: ou a pessoa é um “falso profeta” e 100% da mensagem está errada, ou é um arauto de Deus (e aí 100% estaria certo). A nosso favor temos um texto bem explícito: “Não extingais o Espírito; não desprezeis as profecias, mas examinai todas as coisas [ponde tudo à prova]. Retende o que é bom.” I Ts 5.19-21, que serve igualmente a nossas profecias e a nossos sermões. “Examinar, pôr à prova” sugere que naquela profecia (ou sermão) há coisas boas e há também coisas ruins; em vez de obediência cega, Deus pede uma cautela respeitosa e com reservas: coisas ruins devem ser descartadas. 2. Aparência x Coração. Enquanto a “tradição” geralmente se ocupa do observável, do exterior, Deus quer o nosso coração, o interior (Mt 15.1-20; Mt 11.28 a 12.8) “misericórdia quero, e não sacrifícios”. E é no nosso coração que estão as provas irrefutáveis de nosso pecado e deficiência. 3. Qual é a vontade de Deus (= o que é que Deus mais quer = qual é o “primeiro de todos os mandamentos” - Mt 12.28): Amar a Deus de todo o coração; e amar ao próximo como a si mesmo (cp. Rm 13.8-10). Isso é mais importante do que todas as outras regras, como até o escriba chegou a perceber (Mc 12.28-34). 4. O exemplo a seguir: Jesus Cristo. Ninguém pode ser mais santo, mais espiritual, mais obediente, mais certo, mais consagrado, etc., etc. do que Jesus. Se Jesus fez alguma coisa, não pode estar errado. 5. Fé. No sacrifício de Jesus, o Messias; na graça e misericórdia do Deus que ama pecadores – Rm 5.8; Mt 7.7-11. Essa fé nos permite correr riscos. (diferentemente do “perdão somente dos pecados passados”, que nos leva àquela “vida na corda bamba”). Jesus foi chamado de comilão, beberrão, amigo de prostitutas e de funcionários corruptos; ele veio para os doentes, e correu o risco de ser confundido com eles. Paulo (I Co 9.19-22) correu o risco de pregar o evangelho da graça (Rm 3.8 – foi caluniado). “Forte na fé” é aquele que realmente acredita que o sacrifício de Cristo foi e é suficiente para salvá-lo, para torná-lo aceitável a Deus. Os “fracos na fé” são os que, além de crer em Cristo, crêem também na necessidade de observar algumas regrinhas – e correm o risco de deixar de crer em Cristo (=escandalizar-se) se as regras forem quebradas – Rm 14 (naquela época, não comer carne oferecida aos ídolos, guardar o Sábado, circuncisão; na geração passada, não beber cerveja, não dançar, não fumar; e hoje?) Veja também Colossenses 2.20-23. Crendo na eficácia do sacrifício de Cristo (isto significa: sabendo que todos os meus pecados foram pagos), posso continuar “em paz” quanto aos meus próprios erros e pecados. Eu assumo que preciso – e sempre precisarei – de um Salvador; reconheço-me doente e não são, e assim recebo a visita salvadora do médico Jesus. Por . Deus já sabia de todos os nossos pecados – e bem por isso enviou Jesus para morrer em nosso lugar. 6. Santificação (Colossenses 2.8 a 3.11). Duas naturezas co-existentes até a volta de Cristo ou até nossa morte. Sempre seremos santos e pecadores (como já dizia Lutero). Bons, mas com maldade também. Até a nossa morte, “se dissermos que não temos pecado nenhum, enganamo-nos a nós mesmos, e a verdade não está em nós”(I João 1.8). Aos 95 anos de idade ainda seremos pecadores, sempre necessitando de misericórdia e de um Salvador. E também teremos o Espírito Santo, nossa nova natureza. A vida aqui na terra, portanto, acaba sendo uma questão de a qual natureza damos mais atenção: viver tentando não errar (que é frustrante), ou, liberto pelo pagamento feito pelos nossos erros, dedicar-se a viver tentando acertar. Creio que é exatamente essa a mensagem da parábola dos talentos – o servo que tinha medo do seu Senhor não podia correr o risco de errar, por isso enterrou o seu talento (Mt 25.14). 7. Do Medo ao amor - I João 4.16-19. “se alguém teme, ainda não está aperfeiçoado no amor… o perfeito amor lança fora o medo”. É o perfeito amor de Deus que operará essa mudança, que convencerá o cristão que, ao contrário do que ele sente, ele não é um escravo que não pode desagradar ao seu Senhor, mas sim um filho adotado com todo o amor (Rm 8.15-17). O Espírito Santo desenvolve dentro de nós esse sentimento de confiança filial (”Aba, Pai”, cuja tradução seria a forma como uma criancinha chama seu pai (paiêêê!). 8. Pessoalidade “(Jesus) havendo amado os seus que estavam no mundo, amou-os até o fim” (Jo 13.1). “Isto é o meu corpo, que é dado por vós” (Lc 22.19) “Jesus [na cruz] vendo ali a sua mãe, e ao lado dela o discípulo a quem ele amava, disse a sua mãe: Mulher, eis aí o teu filho. Então disse ao discípulo: Eis aí tua mãe. E desde aquela hora o discípulo a recebeu em sua casa.” (Jo 19.26,27). Deus está interessado em pessoas, não em planos. A aliança dele é feita com gente, mais do que com conceitos, princípios ou idéias. Jesus não morreu por causa de planos, mas por causa de pessoas, dos seus discípulos, você, eu e todos os outros. 9. Crescimento “na graça e no conhecimento de Deus” – atitude básica de fé perante nossa vida concreta, aceitando as dificuldades e revéses, vendo (e participando de) o processo de Deus moldar nosso caráter. Apesar da salvação ser exclusivamente por fé, sabemos que aqueles que entrarão no Reino de Deus (Mt 25) serão misericordiosos, espontâneos e autênticos. Isso provavelmente explica muitos acontecimentos difíceis em nossas vidas. 10. Crescendo na esperança – a certeza do fato da ressurreição e da volta de Cristo – isso é verdade e não fuga. Por conta dessa perfeição no céu, podemos nos fortalecer e nos conscientizarmos de que vamos sempre conviver com muitas “imperfeições” aqui na terra. Isso vale para igreja, casamento, auto-realização, saúde, economia e, também, psicoterapia… Se houver um mínimo de abertura, podemos lembrar nosso pacientes da “doutrina da falibilidade pastoral” (apesar da unção), caminho para a libertação do ideal de “super-homem”. Em contrapartida, o respeito ao pastor, apesar das suas falhas: estamos aprendendo a aceitar a mistura de joio e trigo na vida, a convivência da natureza justa com a pecadora, também em nós mesmos. 11. O tom da Bíblia. Texto escrito não tem entonação: ela é dada pelo coração do leitor (ou do pregador). Considerar as recomendações bíblicas menos como proibições de um deus irado, e mais como bons conselhos de um amigo que sabe das coisas e conhece os caminhos. (sobre “usos e costumes”, ver também o livro: O que a Bíblia permite e a Igreja proíbe – Ricardo Gondim). Uma questão derivada: a consciência pesada pode ser uma “consciência doente”, e não a voz do Espírito Santo; nossa consciência é tão falha quanto nossas emoções; somente Deus é que “sabe todas as coisas” – I João 3.20,21. Há muito mais temas e textos, e mais ainda são os que eu não domino. Não pus aqui todas as referências bíblicas utilizadas, para não truncar demais a leitura. Fico à disposição, no que puder, para outros questionamentos, porque creio que vale à pena investigar a fundo essa questão da imagem de Deus que temos, que é a própria essência do evangelho (precisamos aprender a receber o Reino de Deus como uma criança). As novas são boas, e eu, você e nossos pacientes precisamos delas. ——————————————————————————– Karl Kepler, pastor e psicólogo em São Paulo, vice-presidente de publicações do CPPC - E-mail: kkepler@sti.com.br; fone: (11) 4136-1793.

Um comentário:

Volney Faustini disse...

Gostei desse insight! Não confundir uma consciência atrapalhada (poluída) com a voz de Deus. Não criarmos Deus à nossa imagem ...

Vou ter que marcar umas horinhas com o Dr. Kepler ... he he

Legal Julio - vamos nessa. Muito bom que vc está juntando forças. Vamos que a revolução está às portas.

Abração!